Íntegra de entrevista: Antônio Nóvoa
terça-feira, 19 de janeiro de 2010 by Reciclagem de Artigos in

Gostaria que o senhor listasse os maiores problemas que observou em seu contato com a educação brasileira.

Para alguém que está fora do Brasil, esta é uma pergunta muito difícil. De um olhar exterior, grande parte dos problemas da escola, no caso brasileiro, estão fora da escola. Estão em situações de pobreza, de redes sociais muito frágeis, um frágil compromisso social com a escola pública. Isso é verdade em relação às classes populares, muitas vezes por situação de ignorância, mas é verdade também do lado das elites, que no Brasil me parecem pouco comprometidas com a escola.

Por que isso acontece?

Certamente, há muitas razões históricas, de cultura e colonização. O compromisso com a escola é historicamente mais frágil nos países católicos do que nos protestantes. Mas há muitas razões das últimas décadas, de algum descomprometimento das elites, que preferem enviar seus alunos a escolas particulares, não sentem essa responsabilidade sobre o bem público que é a escola.

Há ainda um segundo leque de problemas que estão dentro da escola. Sentimos que às vezes há uma generosidade dos professores, um voluntarismo. Há gente boa, com algum compromisso e vontade de mudar. Mas, para quem vê de fora, o que há é a sensação de uma grande desorganização da escola. Há muitas atividades, mas fica a sensação que a organização regular, cotidiana e sistemática da escola deixa muito a desejar. Há muita agitação, muitos projetos, mas pouca coerência e pouca consistência. Há, ao mesmo tempo, uma grande burocracia, sem dúvida.

O que caracteriza melhor a escola é, ao longo de um ano, ao longo de dez ou vinte anos, ter um conjunto de atividades regulares, sistemáticas, de ensino. E nos Brasil se tem a sensação que se está a inventar o mundo todos os dias. Troca a política educacional, trocam os governantes, os professores mudam muito. Os professores também faltam muito, o que na Europa nos surpreende muito. Aqui os alunos têm sempre aulas! Se o professor não pode vir, é substituído por outro, mas há uma regularidade cotidiana no trabalho do aluno, que por vezes não se sente no Brasil.

Em que medida a capacitação de professores melhora a qualidade da educação? Como deve ser feita?

Nos últimos 30, 40, 50 anos houve muita teoria educativa, pedagógica, reflexão sobre a educação. Mas quando vamos escavar em profundidade, chegamos sempre a conclusão que o professor é uma peça absolutamente central da escola. Podemos ter todas as teorias, mas se não tivermos professores extraordinariamente bem formados, não conseguimos segurar a qualidade do ensino.

Na formação inicial dos professores, há um momento muito importante, que nós chamamos de fase de transição. É quando eles saem das universidades e vão começar a ensinar. Esses primeiros anos são centrais e têm sido descuidados no Brasil, contrariamente a outros sistemas educativos. O professor aprendeu técnicas e métodos na faculdade, mas onde ele aprende a ser professor é nesses primeiros anos de exercício profissional. A pessoa acaba seu curso, entra na escola, muitas vezes fica com as piores turmas, nos piores horários e é deixada ali em uma "batalha de sobrevivência". E isso é dramático, porque os professores acabam por criar certas resistências em relação a profissão que não lhes permite serem bons professores.

O que poderia ser feito nesse sentido?

Criar parcerias entre as escolas, universidades e os poderes políticos para assegurar um acompanhamento. Uma coisa simples, nem que fosse todas as semanas, na sexta-feira, das cinco às seis da tarde, há uma reunião de reflexão com os professores. Nem que fosse introduzir uma hora de reflexão por semana, isto só por si já traria melhorias inacreditáveis no acompanhamento dos professores. Uma reflexão coletiva sobre as maiores dificuldades da semana, quais ele conseguiu superar. Podem ser às vezes coisas muito pequeninas, não de grandes programas, que melhoraria muita coisa na capacitação dos professores.

Os professores devem ter capacidade de participar do projeto educativo da escola. Cada escola tem que ter seu próprio projeto, baseado em sua equipe pedagógica, em um determinado conjunto de objetivos. A escola não pode ser apenas uma espécie de serviço burocrático, em que todas são iguais, que funcionam da mesma maneira, com os mesmos projetos.

E a formação continuada?

A formação continuada é o que pode ajudar o professor a ser melhor e a ter práticas de ensino mais eficientes. Mas é preciso que ela facilite o trabalho dos professores e não que complique ainda mais. Os programas de formação devem ser uma ajuda na vida dos professores e não mais uma tarefa, mais um aborrecimento. Devem ajudar em duas dimensões: a pensar e organizar o trabalho escolar. Isto é, deve estar dentro das escolas, não deve ser mais um conjunto de teses e teorias. E, ao mesmo tempo, esse trabalho de formação deve ter centro na equipe pedagógica dos professores, e não reforçar práticas individualistas. O trabalho do professor complexidade tão grande que é inimaginável pensar que possa ser resolvido individualmente. Os problemas que a escola enfrenta só podem ser resolvidos de maneira coletiva, por meio de pessoas que refletem em conjunto sobre eles.

Ser professor hoje é mais complexo do que foi no passado?

É muito mais difícil. Por duas grandes razões. Porque todas as crianças hoje em dia estão na escola. E no passado não estavam. Há 50 anos, estavam na escola apenas as crianças que estavam convencidas, pelas famílias, que a escola era uma coisa boa. Hoje, na escola está toda a gente. Ricos e pobres, os que acham que a escola tem sentido e os que acham que não tem sentido nenhum, toda uma enorme diversidade. Isso cria uma grande perturbação na escola entre os professores. Uma vez uma professora americana falou em um congresso "O que eu gosto mesmo é ensinar, dar aulas. No entanto, eu perco mais de 90% do meu tempo para tentar por ordem na classe, para tentar criar condições para que eu possa fazer o que gosto". Esse trabalho, 50 anos atrás, os professores não precisavam fazer.

Isso é comum tanto no Brasil quanto na Europa?

Tanto no Brasil quanto na Europa. Julgo que os problemas da educação são os mesmos no mundo inteiro, mas têm uma dimensão muito diferente de um país para outro. É evidente que no Brasil eles têm uma dimensão, uma profundidade muitíssimo maior.

A sociedade espera muito dos professores. Qual a contrapartida o governo deve oferecer aos professores para que isso aconteça? Salário de professor interfere na qualidade?

Se não houver melhoria nos aspectos do ponto de vista salarial, do prestígio social, tudo o resto é impossível de conseguir. O que acontece no Brasil, e é uma situação quase única no mundo, são professores que trabalham em duas escolas, em dois horários ou até três. Isso é evidentemente impensável. Não há possibilidade do professor ser bom se ao meio dia corre de uma escola para outra, à noite vai para outra escola. Os professores têm que ter o salário bom, fixarem-se em uma escola e dedicarem a essa escola o melhor de sua atividade profissional. Na Europa, ou mesmo em Portugal, um professor primário tem um salário, por vezes, superior a um professor de universidade. O salário de um professor no meio da carreira pode ser qualquer coisa da ordem de US$ 4 mil. Estamos a falar de um prestígio simbólico que dá ao professor uma responsabilidade.

A sociedade deve quase tudo a escola. As escolas se transformaram em um amálgama de coisas, onde se faz tudo, desde a parte da atividade física, da sexualidade, da saúde, do meio ambiente, da cidadania...e ninguém sabe verdadeiramente o que é central e o que não é. As sociedades contemporâneas, do século 21, têm que assumir uma maior responsabilidade por essas coisas e deixar às escolas um trabalho mais restrito, centrado sobre as questões da aprendizagem do aluno. Sei que isso é muito difícil, é mais difícil ainda no Brasil, onde a dimensão do problema social é tão grande que a escola não pode e não deve ignorar. Mas a escola não pode fazer tudo e fazer tudo malfeito. Porque o que nós notamos em muitas escolas é que os alunos, por cinco, seis anos, tiveram milhares de atividades, projetos é hoje de uma iniciativas, mas chegam ao fim dos oito anos e não sabem o mínimo das aprendizagem básicas escolares.

Qual seria o país que hoje possui uma escola pública modelo?

Os modelos de escolas mais fortes são dos países nórdicos, da Suécia, da Finlândia, e estamos a falar de três ou quatro séculos de responsabilidade e compromisso social com a escola. É uma longa história, não são três ou quatro anos, nem três ou